Uma das constatações mais interessantes, é a de que todos, sem exceção, apontam uma falta de estratégia como causa de todos os problemas. Como se houvesse um desgoverno total.

Porque é que existe esse sentimento profundo?

Será porque o modelo de organização percebido não deixa claro quem tem a responsabilidade de definir as coisas? É a ACSS mas não é, é a SPMS mas não é, é a DGS mas não é, são os hospitais e outros prestadores públicos e privados, mas não são. Ao fim e ao cabo cada um prossegue à sua maneira a sua estratégia, e o que todos sentem é a falta de uma harmonização, a falta de hierarquização de prioridades, a falta de um quadro regulador em que todos se reconheçam, a clareza dos aspectos em todos se devem encontrar e os espaços onde todos se possam desencontrar, ou melhor diferenciar, assegurando o interesse colectivo.

Estranhamente, sucessivos governos criaram um círculo quase perfeito relativamente à definição das competências e das responsabilidades quanto à estratégia. Em linguagem popular: uma pescadinha de rabo na boca. Todos são e ninguém é. A estratégia anda às voltas. Sempre complexa, sempre extensa, ninguém se reconhecendo nela, todos esperando possivelmente que alguém dê o passo em frente em matéria tão sensível.

A consequência mais grave deste facto é que os problemas, ambiguidades, deficiências, etc. existentes na definição e operacionalização dos Sistemas e Tecnologias da Informação, e que impactam na actividade diária, em lugar de serem vistos como problemas que têm de ser resolvidos por todos e encarados com normalidade, passam a ser vistos como problemas inultrapassáveis, para os quais não se descortina solução nem se vê caminho nem luz orientadora. O desencanto impera. O que é mau ou menos bom não melhora, piora. E já ninguém ajuda. Todos exprimem insatisfação e buscam-se culpados.

Já o atual governo abordou a questão elaborando a Estratégia Nacional para o Ecossistema de Informação de Saúde 2020 – ENESIS 2020, publicada no final do ano passado.

Dois aspetos se consideram muito positivos:

O primeiro, a ambição de pretender definir “uma abordagem que extravasa o SNS e que se estende para o Sistema de Saúde como um todo”. Vem colmatar a deficiência crónica de que o setor privado e o setor social se queixam, tanto a parte financiadora como a parte prestadora, de ficarem esquecidos nas políticas globais, que competem ao estado. Não só esquecidos como até perturbados por iniciativas e normativas que os não tiveram em conta, e que de algum modo apenas refletem os interesses do setor prestador de cuidados públicos.

O segundo, o realismo que denota ao aceitar a “interdependência das políticas de saúde no contexto internacional e europeu”. A livre circulação de doentes no espaço europeu é hoje uma realidade que tenderá a acentuar-se, apesar da saúde ser assunto que continua a ser visto como de proximidade.

É aceite pelo Estado a “Consagração do princípio da centralidade no cidadão”, o que não pode ser conseguido sem reconhecer que os cidadãos e os doentes circulam por todos os sistemas públicos, privados e sociais, em alguma fase da sua vida. Não era aceitável que os setores sociais e privados fossem vistos numa perspectiva de desigualdade perante as políticas do Estado, não tendo outras limitações que não as que decorrem do efetivo interesse público.

Esta Estratégia parece ser um esforço para dar um passo em frente.

Reconhece um conjunto de desafios: “promoção de uma governação mais alargada e coerente”, “alinhamento de objetivos”, “gestão do orçamento”, “gestão da mudança”, “gestão dos benefícios”, “adoção de inovação”, “competências dos recursos humanos”, “arquitetura de sistemas de informação abrangente, comunicável e auditável”, “gestão dos riscos e da segurança”, “usabilidade”, “atualização tecnológica do parque”, e “dos sistemas legados”, “racionalização”, “partilha”.

Excelentes palavras, estas. Que seguem com “Consagração do princípio da centralidade no cidadão”, “interoperabilidade legal, organizacional, semântica e técnica específica”, “progressiva adoção dos adequados standards internacionais do setor”.

Um conjunto de palavras verdadeiramente excelentes. Mas serão uma verdadeira novidade? Afinal o que traz de novo e útil esta Estratégia Nacional para o Ecossistema?

Não deixa ainda de ser interessante a visão de um ecossistema de informação na saúde, uma designação nova para uma questão velha: “criar o enquadramento e as condições através dos quais os diversos atores do Sistema de Saúde possam contribuir para a evolução do ecossistema de informação da Saúde”, e “orientar as estratégias e iniciativas dos diversos intervenientes do ecossistema, de modo a progredir de uma forma colaborativa ou independente para objetivos comuns.”

Sendo os ecossistemas coisas delicadas, com equilíbrios frágeis, nos quais a mínima intervenção limitadora do livre curso da natureza pode produzir danos irreparáveis e a destruição do próprio ecossistema, nem os predadores escapando, necessitam de esclarecimento as dúvidas naturais: estamos de facto em presença de um ecossistema? É uma descrição adequada da realidade, ou apenas um conceito intelectualmente atrativo? Sendo o sistema descrito como “necessariamente dotado de dinâmicas próprias pela sua natureza complexa e orgânica e de propriedades emergentes”, aplicar-se-ão os outros conceitos e leis da ecologia? O do ciclo de energia? O da cadeia alimentar?

Temos então um bom ponto de partida para o debate sobre estratégia, debate absolutamente necessário, pois estratégia existe publicada mas poucos se aperceberam dela ou se consciencializaram do que traz de novo e do que tem de útil.

Deixemos as perguntas para o debate, mas poderiam ser desde já colocadas algumas relativas aos atores: garante de facto a estratégia a contribuição dos diversos atores? Garante ela a biodiversidade do “ecossistema”? Sendo a estratégia uma dinâmica, que papel está atribuído a cada ator? Para onde a estratégia o conduz na sua qualidade de ator?

Será que os atores foram envolvidos nela? Será que eles se reconhecem nela?

A estratégia afinal é “aplicável apenas a título voluntário, à administração autónoma e a outras pessoas coletivas de direito público”, e não é extensível às demais entidades da área da Saúde exceto se já estiver previsto na lei?